Por MAÍRA MORAES*
Especial para o R7
As ocupações de prédios no centro velho de São Paulo por parte de movimentos sociais de moradia tem sido um assunto polêmico tanto na mídia como no cotidiano.
A recente reintegração de posse do Hotel Aquarius da avenida São João, em São Paulo, expôs três problemas da sociedade brasileira: a criminalização dos movimentos sociais, a utilização da violência como única forma de diálogo com os movimentos e o uso da mídia para justificar esses atos.
Muitos veículos noticiosos apresentaram a reintegração de posse como uma manifestação do Estado de Direito e a legitimação da propriedade privada. E uma parcela considerável da população compartilha essa ideologia das chamadas “elites dirigentes”, ainda que não pertençam a ela.
Uma possível explicação para essa “cegueira social” é a estrutura social brasileira. Colonização e a longa duração do modo de produção escravista ocasionaram a exclusão social de negros e indígenas. Mesmo após a desarticulação da escravidão, a classe trabalhadora brasileira não conseguiu conquistar a cidadania.
Direitos mínimos sempre foram negados à maioria dos brasileiros, que sofrem com pobreza, desemprego, falta de acesso à educação, saúde e as estruturas mínimas de vida. Esse discurso conservador partilhado por diversos extratos da população é resultado da percepção defeituosa de Estado de Direito.
Pois como podemos reivindicar algo que não conhecemos?
Violência do Estado
O Estado brasileiro sempre teve uma postura negativa em relação aos movimentos sociais. Em nossa história, há um grande número de repressões violentas, como a Guerra de Canudos.
Ainda que a maioria dos “inimigos da pátria” sejam famílias, o simples questionamento da ordem existente é o bastante para uma resposta violenta. A tática da imposição do poder pelo monopólio da violência por parte do Estado é antiga e quase uma tradição brasileira.
O desconhecimento dos próprios direitos constitucionais, a percepção de que a lei se faz na força policial e a cobertura jornalística são os ingredientes para a formação do senso comum.
Padarias, restaurantes, ônibus partilhavam o ódio aos integrantes da FLM – Frente de Luta pela Moradia, movimento social responsável pela ocupação no centro paulistano.
As imagens veiculadas mostraram mulheres, crianças e idosos sendo expulsos à força debaixo de bombas de efeito moral. Parte do discurso jornalístico os chamava de vândalos e baderneiros. Mas, implicitamente, a mensagem era simples: a propriedade privada é inalienável.
Ou compram comida, ou pagam aluguel
Poucos se interessarão em saber, e também não será divulgado, que a maioria desses prédios do centro possuem dívidas astronômicas com a União. São anos de IPTU, contas de luz e água atrasadas. Soma-se a isso, o abandono da edificação, que traz risco de saúde às imediações.
Também não será capa de nenhum jornal que a maioria dessas famílias são trabalhadores, que devido à alta dos aluguéis e ao rechaço dos salários, se viram impedidos de conseguir uma moradia. Ou compram comida ou pagam aluguel.
Exclusão social se mantém
Crescimento econômico não traz cidadania. Essa afirmação é verídica, pois mesmo com os programas sociais e o aumento do crédito, as velhas estruturas de exclusão se mantém. Afinal, se os direitos dos cidadãos estivessem sendo respeitados por que se arriscar no enfrentamento com a polícia? Ou mesmo ocupar um prédio sem condições mínimas de moradia?
O motivo de formação de um movimento social é único: quando os direitos de uma parcela da população não são respeitados, eles se levantam. A estranheza neste caso é a reação de uma parte da chamada da “classe média”, que é na verdade a classe trabalhadora brasileira. Que reage de maneira quase patológica a qualquer manifestação coletiva, ainda que legítima. E vibra com a repressão policial, mesmo que os algozes estejam combatendo pessoas que poderiam ser de suas famílias.
Inimigo debocha de nossa ignorância
Se existe discordância do modus operandi dos movimentos, ao menos humanidade e solidariedade com as crianças e idosos seria o básico. Mas São Paulo nos surpreende até nisso, na sua enorme capacidade de admirar a violência.
Em tempo, vale lembrar que, pela Constituição, no artigo 6º "[...] são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".
Ou seja, a FLM reivindica apenas o direito constitucional. Pobres de nós, que lutamos contra nós mesmos, enquanto o inimigo debocha de nossa ignorância.
*MAÍRA MORAES é historiadora formada pela USP (Universidade de São Paulo), na qual também é pós-graduada em Mídia, Informação e Cultura. Colunista convidada, escreve no R7 Cultura todo primeiro domingo do mês. A opinião dos colunistas convidados não reflete, necessariamente, a opinião do R7.
Curta a nossa página no Facebook
Leia também:
Saiba o que os atores fazem nos palcos e nos bastidores